No Vale da Estranheza
Minha mãe não sabia ler, nem escrever. Seus dedos calejados jamais percorreram as linhas de um livro, e as letras que compunham as palavras, para ela, eram como símbolos misteriosos de um mundo distante. E, no entanto, lá estava ela, todas as manhãs, limpando as ruas insones do centro de São Paulo, enquanto a cidade despertava.
Ser gari era seu ofício. Caminhava pelas calçadas antes que a luz do dia tomasse seu lugar, varrendo as folhas caídas e os rastros de uma noite que parecia nunca acabar. Mas seu trabalho não terminava com o toque final da vassoura. Depois do expediente, o sol já alto, ela se transformava em vendedora ambulante. Canetas, carteiras, porta-cheques — objetos que, ironicamente, ela mesma não sabia usar.
E aqui está o vale da estranheza. Haveria algo mais paradoxal do que uma pessoa iletrada vendendo instrumentos da escrita? É como um pintor sem pincel, ou um músico sem instrumento. Minha mãe, no entanto, não via ironia. Para ela, aquelas canetas representavam uma oportunidade, um sustento para a nossa casa. Ela vendia o que não podia usar, com o mesmo amor com que nos educou, sem jamais reclamar.
Ao lado de meu pai, ela dividia o peso da responsabilidade de nos sustentar. Enquanto ele também lutava suas próprias batalhas diárias, era ela quem complementava o sustento, garantindo que a casa tivesse sempre o necessário. Juntos, formavam uma parceria silenciosa e resiliente, na qual o trabalho de ambos se entrelaçava em uma dança de sacrifício e amor.
Era um cotidiano duro, de batalhas invisíveis, travadas nas madrugadas frias e nas calçadas quentes de uma São Paulo frenética. E ali, no meio dessa vida aparentemente comum, eu aprendi a ver o extraordinário. Ela, que nunca desenhou seu nome em papel, traçou a nossa história com a força de suas mãos e o peso de seu silêncio.
Minha mãe vendia canetas, mas sua verdadeira escrita era feita nas linhas invisíveis da vida, na resiliência que só quem enfrenta o impossível conhece. Não sabia ler, mas nos ensinou as mais valiosas lições. E hoje, em cada palavra que escrevo, vejo sua história — uma história escrita com o suor de quem não precisa de letras para deixar sua marca no mundo.
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